A Sociedade Brasileira de Alimentação e Nutrição levando em consideração dados da literatura científica pertinente e o documento a seguir, posiciona-se no sentido de que:
- a dieta sem glúten deve ser instituída na vigência de doença celíaca, alergia ao trigo e de sensibilidade não celíaca ao glúten, desde que devidamente diagnosticadas;
- a dieta sem glúten per se não pode ser considerada benéfica para indivíduos aparentemente saudáveis e que a falta de planejamento na sua instituição pode, ainda, potencialmente afetar a saúde do trato digestório.
Não há dúvidas que, em boa parte dos países ocidentais, a Nutrição possa ser considerada uma das ciências mais atraentes ao público leigo. É provável que as maiores incidências de obesidade, o estabelecimento de doenças crônicas não transmissíveis e a crescente preocupação com padrões estéticos rígidos sejam os principais responsáveis por esse novo boom e levem pessoas antes desinteressadas por assuntos relacionados à sua alimentação a se tornarem “especialistas” em estratégias que contribuam para a melhora da saúde e da aparência.
Reconhece-se como muito salutar a busca por mais informações nessa área, uma vez que a promoção da saúde e a educação nutricional dependem da conscientização popular para serem eficazes. No entanto, através da veiculação pela mídia não especializada, observa-se a propagação do que hoje se conhece por “dietas da moda”, as quais surgem com a premissa de promoverem a perda do peso e de melhorarem a saúde de forma generalista, sendo, todavia, pautadas em constatações empíricas ou em estudos recentes que por muitas vezes se mostram incompletos ou inconclusivos.
Nessa “onda” de dietas restritivas ou monótonas, observa-se a popularização de um padrão alimentar anteriormente adotado apenas por indivíduos portadores de doença celíaca (DC) ou de alergia ao trigo, caracterizado pela exclusão de alimentos contendo glúten da dieta (gluten free diet).
Pacientes celíacos apresentam uma alteração genética que resulta na inflamação intestinal quando do contato com peptídeos oriundos da digestão do glúten presente no trigo e em outros vegetais do mesmo gênero, como a cevada e o centeio. De forma simplificada, a gliadina resultante do metabolismo do glúten na luz intestinal é transportada até a lâmina própria do intestino delgado onde, após metabolização, poderá induzir resposta imunológica adaptativa e inata e posterior produção de moléculas que promoverão o estabelecimento da inflamação, responsável pela atrofia dos vilos e hiperplasia nas criptas intestinais. A alteração morfológica da borda em escova leva à redução na capacidade absortiva e é comumente observada em doentes celíacos.
Além da DC, diversas evidências recentes sumarizadas em um artigo de revisão publicado este ano na revista Clinical Nutrition comprovam a existência de uma alteração cunhada por especialistas na área como “sensibilidade não-celíaca ao glúten” (non-celiac gluten sensitivity-NCGS). Diferentemente do que ocorre na doença celíaca, na NCGS o trato gastrointestinal e a permeabilidade da barreira intestinal são preservadas, e as alterações histológicas dos vilos e das criptas não são intensas, havendo, todavia, o estabelecimento de inúmeros distúrbios para o paciente que mantém uma alimentação convencional, rica em glúten. Ainda, observa-se infiltração de linfócitos mais branda e inflamação de menor grau no trato intestinal quando comparadas com o observado em indivíduos com DC.
A prevalência de NCGS é maior do que a de DC e a de alergia ao trigo, sendo frequentemente observada em pacientes com síndrome do intestino irritável e entre indivíduos acometidos por alterações alergênicas diversas. Para o diagnóstico clínico, sintomas comuns à essa alteração – tais como cansaço, dores de cabeça, desconforto gastrointestinal, flatos e diarréia – devem ser abolidos quando o paciente suspende a ingestão de alimentos contendo glúten. Todavia, não há nenhum exame bioquímico eficaz para o diagnóstico preciso da condição.
Independente da condição clínica apresentada, a terapia básica para indivíduos intolerantes ao glúten conta com a exclusão de alimentos que contenham cevada, centeio e farinha de trigo. Curiosamente, desde o ano de 2004, o mercado de produtos livres de glúten vem crescendo aproximadamente 30% ao ano, o que não se deve ao aumento da incidência de casos de intolerância ao glúten ou ao maior rigor no tratamento dos pacientes, mas sim ao aumento da demanda gerada pela adesão à dieta gluten free (GF) entre indivíduos não-celíacos e não diagnosticados com NCGS. Segundo os próprios consumidores, a principal razão para a escolha de produtos GF é a crença de que estes seriam mais saudáveis que os comuns, auxiliando na perda de peso e na melhora de outras condições fisiopatológicas e de desconfortos gastrointestinais.
Apesar da sensível melhora na saúde de indivíduos com alterações relacionadas ao glúten, constata-se que não existem evidências suficientes para apoiar as crenças entre indivíduos que não são sensíveis a esse peptídeo. Com relação à perda de peso excessivo, por exemplo, é difícil afirmar se até mesmo pacientes celíacos são beneficiados, uma vez que estudos mostram que indivíduos obesos acometidos de DC podem ter seu IMC aumentado e que a prevalência de obesidade entre crianças celíacas pode duplicar quando da adoção da dieta GF. Além disso, esse tipo de dieta é frequentemente pobre em grãos integrais e fibras, cujo consumo é inversamente relacionado ao IMC.
No que concerne à saúde gastrointestinal, um estudo experimental publicado em uma das mais respeitadas revistas da área demonstrou possíveis efeitos negativos da dieta GF sobre a flora intestinal de indivíduos saudáveis. Por conta da exclusão de alimentos contendo trigo, no período de um mês houve redução significativa na proporção de bactérias benéficas que colonizam o intestino em relação de bactérias patogênicas nas fezes de 10 indivíduos adultos, fato provavelmente associado ao menor consumo de oligofrutose e inulina — frutanos do tipo inulina — os quais têm ação prebiótica e, desse modo, estimulam seletivamente o crescimento de determinadas espécies bacterianas consideradas benéficas (bifidogênicas) ao hospedeiro. Por conta do efeito prebiótico, pode-se ainda afirmar que o consumo de farinha de trigo integral por indivíduos não sensíveis ao glúten contribui para a redução do risco de câncer intestinal, de condições inflamatórias, de dislipidemias e de doenças cardiovasculares.
Cabe, no entanto, destacar que dietas GF podem ser saudáveis para o público em geral, caso tome-se o cuidado de serem selecionados outros cereais integrais, além de hortaliças e alimentos com baixa densidade energética. Entretanto, isto não implica na retirada do glúten ser a responsável por possíveis efeitos benéficos observados.
Finalmente, é possível afirmar novamente que a falta de evidências científicas sólidas faz com seja aceita a premissa de que a dieta GF per se não pode ser considerada benéfica para indivíduos aparentemente saudáveis e que a falta de planejamento na sua instituição pode, ainda, potencialmente afetar a saúde do trato digestório
Lucas Carminatti Pantaleão
Nutricionista pela Universidade de São Paulo, Mestre em Nutrição Experimental e Membro do Laboratório de Biologia Molecular do Instituto de Ciências Biomédicas da USP.
Membro da Comissão de Comunicação da Sociedade Brasileira de Alimentação e Nutrição – SBAN.
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